A história do Brasil é marcada pelo flagelo da escravatura de africanos sujeitados a todo tipo de exploração. Uma parte dos escravizados conseguiu fugir dos patrões, escondendo-se em interiores isolados. Os descendentes são chamados “quilombolas”. A Constituição Brasileira de 1988 reconhece as comunidades quilombolas como legítimos detentores dos territórios por elas ocupadas.
É o caso da comunidade “Riacho de Sacutiaba”, na margem direita do Rio Grande, uns cem quilómetros ao norte da cidade de Wanderley. Por décadas, fazendeiros da região tentaram expulsar as famílias quilombolas do seu território. Mas resistiram, até hoje, sustentando-se das roças de subsistência e dos rebanhos criados na vegetação que a própria natureza oferece. No ano de 2004, a Fundação Palmares certificou a comunidade. Pela Portaria 155 do dia 16 de março de 2017, o INCRA reconheceu, finalmente, 12.285 hectares como território tradicional de “remanescentes de comunidades de quilombo”. Entretanto, até hoje o processo de regularização fundiária não foi concluído, por causa dos litígios de terceiros em torno dos procedimentos indenizatórios.
A região é isolada. Quando chove muito, só há acesso à comunidade pelas águas do Rio Grande. A margem do rio é totalmente preservada. As 65 famílias cultivam, no total, acerca de 10 % da área. O resto, incluindo toda a margem do Rio Grande, é preservado no seu estado natural, por vontade determinada da comunidade, para manter a diversidade de fauna e flora que caracteriza essa região de transição entre Cerrado e Caatinga. Embora exposta pela falta de regularização do território, a comunidade defende a integridade ambiental da sua área contra invasões por terceiros, roubo de madeira, caça ilegal etc. A identificação com o território é tamanha que muitas árvores carregam nomes ancestrais das famílias (“Umbuzeiro da Justina”, “Jatobá do Catarino”, ...).
A penalização da comunidade
No dia 11 de maio de 2023, o Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos na Bahia – INEMA vistoriou a comunidade quilombola e aplicou várias multas e penalidades. Desde então, a comunidade tem ficado atônita, profundamente abalada com essa fiscalização e autuação. O choque ficou ainda pior quando o Ministério Público Federal, em decorrência da autuação pelo INEMA, instaurou um processo, colocando a Polícia Federal para apurar os fatos.
O que tinha acontecido? A cisma de um membro idoso da comunidade que parte da área do território era patrimônio particular dele, resultou numa denúncia contra desmatamento ilegal praticado pela própria comunidade. Um político interesseiro acionou o INEMA – que nunca tinha vindo à área, apesar de muitos convites para combater a caça ilegal e conhecer o
rebaixamento das lagoas marginais. – Foram autuadas então, com as penalidades de interdição e multa: Supressão de 14 hectares de vegetação nativa para plantio de culturas de subsistência (mandioca, feijão, milho, abóbora) sem a devida autorização, aproveitamento de 85 lascas de aroeira para defender a roça de subsistência, desmatamento de 0,7 hectares na APP ao longo do riacho intermitente. – Dentro do prazo legal (com apoio da Agência 10envolvimento), a comunidade apresentou a sua defesa: Que a comunidade ocupa e usa o seu território em conformidade com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais; que atividades de subsistência não devem ser afetadas por embargos aplicados para propiciar a regeneração do meio ambiente; que as famílias não tinham conhecimento da proibição do uso de lascas de aroeira para cercamentos necessários no próprio território delas; e que o desmatamento na APP ao longo do riacho tinha sido executado por fazendeiros invasores, não pela comunidade. – Não obstante, no dia 03 de abril deste ano, o representante da comunidade foi interrogado pela Polícia Federal, sobre fatos que configuram crimes ambientais. Essa denúncia mexe muito com as famílias.
A contradição
Sendo acusadas de “crime ambiental” pela aplicação de 3,30 m³ de madeira protegida por lei, as famílias quilombolas olham atordoadamente para as duas fazendas vizinhas que beiram os laterais do território quilombola. Justamente quando elas fincaram as 85 lascas de aroeira no seu território, presenciaram o desmatamento de 2.978 hectares de vegetação nativa, autorizado pelo INEMA, na fazenda vizinha “Conceição”, e o desmatamento de 1.304 hectares de vegetação nativa, autorizado pelo INEMA, na fazenda vizinha “Boca do Tabuleiro”. Nos dois lados, tudo virou cinza, inclusive inúmeros metros cúbicos de madeira de lei. Toda população regional é testemunha disto. Mas não houve fiscalização do INEMA, nem preventiva, nem corretivamente. Conquanto, como as famílias quilombolas de “Riacho de Sacutiaba” podem compreender a justificativa das penalidades aplicadas contra elas enquanto os danos e crimes nas fazendas vizinhas ficam sem fiscalização nem punição?
É um tanto óbvio quanto nítido que a comunidade quilombola de “Riacho de Sacutiaba” se compreende como guardião da integridade ambiental do seu território. Ao longo da sua história, sempre tem pedido orientação e suporte de órgãos públicos e entidades parceiras para tal fim. – Não obstante, o que o INEMA tem feito nas áreas de “Riacho de Sacutiaba”, “Boca do Tabuleiro” e “Conceição”, é medir com pesos diferentes - criminalizando a comunidade quilombola e isentando as duas fazendas do Agro.
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